Há habilidades inacreditáveis nela, nasceu na simplicidade e a fez de escudo na vida, nas ruas, nos trilheiros e vielas
Menina moça, debruçava na janela, sua beleza contagiante despertava interesses aos moços, eternos candidatos, fizeram a côrte para ela
 
Criança pobre, vendeu manteiga, banana, pendurou-se no carro do leiteiro, sonhou com tudo, o tempo inteiro,com a bicicleta, com a boneca, jogou torito, chupou pirulito, tagarelou, assustou-se com gritos, acreditou em mitos
 
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Na escola conteve seus ímpetos de criança alegre, festeira, acatou imposições das freiras, derrubou o tinteiro na carteira, gaguejou, errou na sabatina, de joelhos, atrás da porta, riu do padre com sua descomposta batina.
 
Aos domingos para estrear novo vestido só era permitido se o fizesse na missa, para compensar a preguiça,o maiô,debaixo da roupa era sorrateiramente colocado e, da matriz, com frequente desenvoltura de uma atriz partia para o rio
 
Na prainha se estirava, provocava arrepio, na água barrenta se jogava, banhada pelo sol se secava, para casa ela voltava, na tarde de um domingo azul, "era a moça mais linda de toda a cidade", viveu lindamente sua mocidade!
 
Matrimônio cedo contraiu, para o pantanal com o marido partiu, sem nada conhecer, predestinada a obedecer, juventude viu se arrefecer
 
Maturidade não tinha, sobrava ingenuidades de menina, distorcia os entendimentos, tolerava o marido ciumento, enfrentou o fogão a lenha, logo se viu prenha,rendeu-se a lida diária ferrenha, varria o terreiro, plantava flores no quintal, encarou sozinha parto normal.
 
Anos a fio fez tudo igual, quando era chegada data próxima ao Carnaval, ardia em febre, tal era seu desejo, negado pelo marido, tudo nela era contido
 
A vida seguia com harmoniosa monotonia, na fazenda ela torcia pela oportunidade de viajar para a cidade, ver a mãe, a família, a todos agradar, bugigangas comprar e a todos presentear.
 
Assim ela se fez, doou recursos, amor, favores, estendeu a mão, recebeu ingratidão, gente dura, amarga, sem coração, há em todas as searas, de montão.
 
Boa filha, boa esposa, boa mãe, "exemplo de mulher", sem direito a escolher sua vida sequer, sem questionar seus desejos, seus anseios, mulheres de uma geração, não lhes foi permitido se cansar, se rebelar, assitiram suas vidas entre os dedos passar e, como atrizes são, de fato, felizes, deram lugar à felicidade alheia, para elas basta ter a casa cheia, o filho feliz, o neto por perto, o marido na velhice já fragilizado, torna-se dependente dela e essa mulher, pacientemente, à todos atende, jamais se arrepende de sua trajetória que faz a sua, a nossa história, a história do sistema patriarcal que fez todos nós, seus filhos, gente normal