Ela descia um pequeno quarteirão, o sinal fechou.

O humilde moço se apressou a dar a última tragada no cigarro, correu até o para-brisas, jogou água de um surrado e pequenino regador verde, imediatamente começou a puxar a água de uma espuma rala com um rodinho de cabo curto, na certeza de que ganharia um trocado, a condutora do veículo olhou fixamente para o moço e com o dedo indicador, fez sinais negativos, contundentes. Ele declinou de sua tarefa em câmera lenta, desolado, como se não acreditasse naquela rejeição, mais uma rejeição, afastou-se como faz um cão, com o rabo recolhido entre as pernas... o sinal abriu, ela seguiu, ligou a seta e virou na primeira esquina, à esquerda. Um turbilhão de pensamentos a invadiu, não sabia mais qual era a canção que ela estava a cantarolar e ouvir, deliciosamente... aquela situação foi o desmonte fatal que, apesar do sol escaldante de uma quente tarde de verão, acinzentou o seu dia e gelou o seu peito.

O que faz uma pessoa rejeitar a outra acintosamente, quando um pedaço de lata, um motor e um vidro elétrico, teoricamente, a coloca em situação de proteção e “superioridade”. A outra, apenas um interlocutor, da mesma espécie, a humana, com necessidades, sentimentos, sofrimentos, brios, apenas com menores condições aparentes, mas, talvez, sua força interior possa ser maior, sua coragem, fé na vida, determinação, solidariedades possam ser mais fortes, evidenciadas no dia a dia.

A dor do outro deveria doer mais, ela exige a iniciativa de voltar atrás, refazer as atitudes, repensar as organizações sociais, colocar-se no lugar, a dor do outro deveria promover vergonha das desigualdades, vergonha de sentir medo do próximo, vergonha do medo da abordagem de um cidadão. Ora! Coitados, cidadãos!! O que é um cidadão? A rigor, membro do Estado com direitos civis e políticos garantidos pela Constituição.

As garantias atuais são as rejeições, o desdém, o desrespeito, a morte, a porrada, os preconceitos, a estratificação social cada dia mais acentuada, a fome, as ruas, a marginalização....

Há um embrutecimento que cega, atravessamos ruas, estradas, caminhos, a vida, sem incômodo com as dores do mundo.

Quando ela “olhou fixamente para o moço e com o dedo indicador, fez sinais negativos, contundentes” perdeu o seu olhar, incomodou-se, chorou, nublou o seu dia, o outro dia, recorreu a poesia...

É, menina de tranças... só vale a pena ser poeta se o seu olhar obedecer a meta, na vida só há beleza com o olhar da delicadeza, no mundo tão desigual, parada no sinal, na vida, no mundo, no pantanal, nos paralelepípedos de onde você extrai poesias ou na lousa asfáltica onde você escreve, imaginariamente, com letras cursivas, desenhadas em sua mente, há no mundo, na cidade: gente, esperança, necessidade...