Acabara de fazer a coleta de dados da tarde ; ainda era cedo pra ir a faculdade , para voltar para casa , seriam duas passagens , aí ficaria sem o café do intervalo , preferiu ‘fazer hora’ no ‘muquifo’ do Pepe , é como ele chama seu porão de consertar calçados .

Abaixo do nível da rua , dois degraus , uma lâmpada acesa o dia todo , um odor de cola   graxa ,couro . . . que não era de todo agressivo . Pepe sentado num banco de madeira , assento de couro cru , quase sempre de cachimbo à boca , um copo ‘rodando’ com marcas de café , um radiozinho ligado para fazer ‘fundo’ e, muito para ser ouvido .

Um toco de madeira , era o local disponível ao lado do artesão ,  além da celebre cadeira almofadada que servia para o experimentar do calçado com os reparos feitos . Cinzeiros de propaganda repletos de ‘bitucas’ , era de fato um modo ‘sui generis’ . . . uma cama de ferro antiga , um pequeno fogão de 2 bocas . . . peças espalhadas, o ‘meu muquifo’ como apregoava Pepe .

O local era procurado por clientes e estudantes que ‘viam’ no espanhol uma fonte de referência e amparo; as vezes não havia local para ficar e o cheiro de café envolvia o ambiente . . . muitas ocasiões , a rubiácea foi o único apoio gastronômico para passar a noite .

Ocasionalmente, a pequena reunião ficava animada , diferentes enfoques sobre um mesmo assunto , nesses momentos Pepe ouvia e aguardava uma possível calmaria, cachimbando , misturando o odor de fumo e café.

Eis que adentra no recinto , um jovem com uma soberba cabeleira afro ,mal respirando , não cumprimentando o grupo , encaminhando-se para o WC sem nada falar  . . . Pepe entendeu .Três militares chegam ao local e pedem documentos , informando ao artesão o motivo da ‘invasão’.

- Estamos na perseguição de um subversivo . Ele corria nesta direção. Tem o cabelo africano . . . ouve-se o barulho do chuveiro e a ordem :- Acabe logo com isso , queremos documentos !

A porta do WC é aberta , surge um jovem loiro , com um macacão um tanto apertado Mostrou a identidade e o assunto fica aparentemente resolvido . O jovem pede licença para ir até a padaria comprar pão . Os militares ficam sem entender . O jovem sai . . .  não volta , com ou sem pão . No WC uma peruca repousa no meio do lixo , ali fica . . .  o grupo é desfeito. Pepe enche o ambiente com suas tragadas , suspira . . . – Conseguimos escapar mais uma vez . . . aumenta o som do radinho , café frio . . . esperar a próxima . . .

‘Saber dissimular é o saber dos reis “ --- Rechelieu (1585/1642)

a.begossi /31/08/16